terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Entrevista: Miguel Jorge

A opinião do escritor Miguel Jorge sobre a luta para levar ao palco a primeira ópera de Goiás, livros de autoajuda, política, censura e o que vem a ser a tal goianidade.
Com “Veias e Vinhos” se descobre que a literatura brasileira não é apenas Jorge Amado e Paulo Coelho, e que Miguel Jorge é um autor capaz de descrever magistralmente a sua terra. É com essas palavras que a Playboy italiana celebrou o livro do escritor Miguel Jorge, lançado este ano no país europeu. Três décadas após o seu lançamento, a obra que narra o assassinato de uma família inteira em Goiânia e a história de uma vítima de erro judiciário, continua fascinando leitores com sua técnica narrativa inovadora. 
Autor de outros 30 livros, o romancista, dramaturgo, roteirista de cinema, poeta e contista foge das comparações fáceis e dos regionalismos. Segundo Miguel Jorge, suas obras são dotadas de universalidade, apesar de tratarem sempre de tragédias que tiveram palco em Goiás. Nascido em Campo Grande (MS) no dia 16 de maio de 1933, mas com carreira sedimentada em Goiânia, recebeu alguns dos mais importantes prêmios nacionais e já retratou em suas obras o drama do Césio 137 e a ditadura militar no Estado. 
Em uma conversa com os editores Fernando Machado e Thiago Pereira, ele falou para a King sobre o projeto da primeira ópera goiana, inspirada em um de seus contos.  Ele condena o descaso crônico das autoridades com a cultura e a educação e combate os rótulos geralmente atribuídos a Goiás. Formado em Farmácia e Bioquímica pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Direito e Letras Vernáculos pela Universidade Católica de Goiás (hoje PUC – GO) e professor de carreira, ele também falou sobre os reflexos da falta de leitura nos cursos superiores. 

King - Segundo a Playboy da Itália, Veias e Vinhos mostrou que a literatura brasileira não está restrita a autores como Jorge Amado. Um ponto em comum entre o seu trabalho e o do escritor baiano é o fato de ambos contarem histórias de suas terras. Que tipo de comparação pode ser feita nesse sentido?
Miguel Jorge - O trabalho do Jorge Amado é regional. Ele não fala do Brasil. Fala da Bahia. “Gabriela” é a prova disso. O meu caso é diferente. Apesar de falar das tragédias que aconteceram em Goiânia em meus livros, como o massacre de uma família inteira, o Césio 137 ou a ditadura militar, meu trabalho é universal. Não gosto de regionalizações. Acredito que é uma forma de limitar a literatura. A verdadeira arte deve ter essa capacidade de ser absorvida no Brasil, na Rússia ou onde quer que seja. Eu fui muito amigo do Jorge Amado, fiz várias entrevistas com ele e reconheço o valor da sua obra, mas acho que esse fator restringe muito. 

Ao falar dos autores brasileiros, a imprensa internacional sempre lembra de Paulo Coelho. Hoje ele é o único escritor vivo no mundo que foi traduzido em um número de línguas maior do que Shakespeare. Como vê isso?
Paulo Coelho é uma autoajuda espiritual. A humanidade está carente de luz e não encontra um caminho. Então ele soube tirar proveito disso e hoje é um sucesso de vendas.

Mas ele é um guia espiritual ou um charlatão?
Nunca me interessei pela obra dele. Hoje ele está no auge, mas isso é passageiro. Somente a boa literatura permanece. Você pode contar nos dedos os que ficam. Quem permanece hoje no Brasil? Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto. É preciso um distanciamento histórico muito grande para fazer um julgamento. A história às vezes resgata um escritor, outras vezes sepulta. Fulano é muito festejado num momento para depois ser esquecido. Machado de Assis está vivo até hoje porque realmente é um dos melhores escritores do mundo. 

Por que a literatura estrangeira vende mais no Brasil do que a nacional?
Porque o brasileiro adora ser colonizado. Você entra em todas as livrarias e só encontra lixo norte-americano. Todo mundo só quer autoajuda, essas besteiras. Ninguém quer uma literatura “pesada”. Para mim, literatura é uma coisa muito séria. Eu não suporto literatura leve ou que não me sacuda de alguma forma. O problema é que as pessoas estão perdendo a capacidade de assombro. Quando você não se assusta mais com nada é porque você está morto em vida. Qualquer obra de arte, seja um livro, um filme ou uma música precisa mexer com o ser humano, causar uma reflexão. Literatura é a palavra trabalhada. Não é apenas um relato. Um boletim de ocorrência da polícia é um relato. É preciso criar palavras novas, como fez Guimarães Rosa. Quem vai superá-lo? Não será Paulo Coelho. Ser escritor não é tarefa fácil. Ele cria de dentro para fora e precisa ter uma técnica nova para oferecer. Os personagens não podem ser caricatos ou meros esboços. Eles precisam ter vida, alma, sangue.
O escritor goiano Bariani Ortêncio conta que seus livros começaram a vender mais depois que passou a utilizar pseudônimos em inglês e títulos como “A Deal With Death”.
Certo, mas pergunta se os leitores americanos estão interessados em autor brasileiro. O brasileiro não gosta do Brasil, mas adora as bobagens que chegam de fora. É um povo que não defende seu país. Se tiver uma guerra aqui, todo mundo entrega os pontos. 

Bernardo Élis é o maior escritor goiano?
Não tenho a menor dúvida quanto a isso. Pena que nasceu em Goiás, caso contrário seria muito mais reconhecido.

Na sua opinião, existe de fato uma “goianidade”, ou seja, uma identidade própria do nosso Estado?
Essa pergunta é simplesmente fantástica. Eu não sou esse goiano que esquematizaram e colocaram em uma redoma em livros e poemas. Acho que ser goiano é muito mais do que isso. Ser goiano é lutar pela sua terra, pela sua identidade. Não é comer pequi. Não existe nada pior para Goiás do que falar que é um povo que come pequi e ouve música sertaneja. E as pessoas saem do Estado falando isso. Eu estava em um clube em Caldas Novas e uma menina gaúcha reclamou para o DJ que só tocava música sertaneja. Ele respondeu que “no Goiás é só sertanejo.” Isso não tem cabimento. Goiás não pode ficar restrito a essas mentalidades burras. 

Você é autor da “Décima Quarta Estação”, a primeira ópera goiana. Esse projeto tem recebido apoio?
Essa ópera foi inspirada em um conto homônimo, que está inserido no meu livro “Avarmas.” A música é do maestro Estércio Marques e o projeto é da PUC de Goiás, a pedido da professora Custódia Annunciatta. O governador já deu seu aval, mas resta a continuidade burocrática que, no entanto, está encalacrada na Secretaria de Cultura do Estado. É um trabalho que está pronto há sete anos! Agora, você acha que governo ajuda? Nunca ajudou a cultura nem a educação. O interesse dos governos é a gente chã. Governo gosta é de voto em precipício, que vai caindo um atrás do outro. Está tudo preparado: músicos, cantores, maestro. Mas cadê os R$ 350 mil para executar o projeto? Mas você pode cobrar de mim porque eu não desisti e vou levar essa obra para o palco.

No período militar, você chegou a ter obras censuradas. Como foi isso?
O palco é a democracia. Então os artistas eram vigiados, muitos foram ameaçados, torturados física ou mentalmente. Comigo não foi diferente. A minha primeira peça, que foi premiada no concurso de dramaturgia do Teatro de Opinião do Rio de Janeiro, foi censurada em Goiás. Só que eles censuraram a parte da peça que julgaram erótica, mas a parte política eles não entenderam.
Então era uma censura burra?
Totalmente (risos). Quem você acha que avaliava o que poderia ou não poderia ser exibido? Intelectuais, artistas? Não. Eram soldados, tenentes, gente que não sabia nada, mas que tinha o poder do mando. Grande parte da minha obra trata do poder do mando. É a coisa mais terrível que pode existir. Gravamos um filme chamado “Urubus” em um lixão em Bela Vista de Goiás, em que retrato como isso ele está presente em todos os lugares. Até no lixão existe um dono do pedaço. Eu vejo com muita tristeza esses pequenos ditadores.

Como professor universitário, como vê a situação do ensino superior atualmente? As faculdades estão formando profissionais cada vez menos preparados?
Falta leitura. Principalmente na infância. E aí a culpa é dos pais. Os colégios também ensinam muita besteira. Não valorizam as pessoas que criam, que questionam e que têm alma. Alunos do curso de Letras chegam à faculdade sem conseguir elaborar frases inteiras. Já vi professor de jornalismo defender isso, dizendo que é assim mesmo e que a internet está fazendo as pessoas escreverem mais. Bobagem. É o pior castigo que o aluno pode receber porque, se não estiver bem aparelhado, não vai a lugar algum. 

O artista é necessariamente um louco?
A criação é uma alucinação. Você não cria se é um cara quadrado e todo certinho. O artista vai ao limbo e ao inferno. Não acredito no discurso de que a droga é um meio de criação porque ela é uma fuga da realidade. Não condeno quem usa drogas, mas acho que é uma coisa para pessoas revoltadas consigo mesmas ou com as condições sociais. Se a pessoa não tem uma riqueza interior, não é a droga que vai proporcionar um poder criador. Eu discuto com meus personagens quando estou caminhando. Falo sozinho o tempo todo. Eu já declamei aos gritos um poema inteiro na praia de Ipanema para não esquecer. Eu não tinha lápis nem papel e foi a maneira que encontrei. Eu acordo à noite e escrevo as coisas que eu vi no sonho.

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