quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

Entrevista: Siron Franco


Uma conversa com o maior artista plástico goiano sobre a mania de queimar quadros no final do ano, a experiência de entrar na faculdade aos 13 e pintar pela primeira vez uma mulher nua, o dia em que ficou escondido no banheiro para não receber uma premiação de Ernesto Geisel e o comportamento sexual maluco dos ingleses.

Foi no seu amplo ateliê em Aparecida de Goiânia que Siron Franco, 64 anos, abriu a porta para receber a reportagem da KING. Incrustado em uma chácara arborizada e afastada da cidade, o imenso galpão tem o teto alto e grandes janelas, que iluminam telas, esculturas e desenhos inacabados em todos os cantos. Centenas de pés feitos de chocolate, caixas de remédio para emagrecer e 400 balanças ainda estavam sendo organizados para compor uma instalação no mínimo intrigante, encampada pelo Ministério da Saúde em uma campanha nacional contra a automedicação.  O goiano acaba de ser nomeado pela ministra do Meio Ambiente embaixador do Cerrado na Conferência Rio+20, que marca os 20 anos da Eco-92, e ainda se prepara para expor seu trabalho na Suíça até o final do ano.
A obra de Siron Franco sempre brotou de suas próprias experiências de vida. A forma sarcástica, excêntrica e passional com que conta suas histórias é a mesma com que pinta atleticamente telas gigantescas ou cria interferências urbanas para provocar uma discussão coletiva. Já colocou 1.200 caixões de crianças na porta do Congresso Nacional para protestar contra a mortalidade infantil. Um dos artistas plásticos brasileiros mais consagrados e premiados no exterior nas últimas quatro décadas, Siron passou mais de duas horas sem se esquivar de nenhuma polêmica. Falou com exclusividade sobre sexo, drogas, religião, política, meio ambiente e do roubo e falsificação de suas obras.


King - Quando você descobriu que era artista?
Siron Franco - Aos 9 anos eu já sentia que era aquilo que eu queria. Gostava do cheiro da tinta. Sempre quis trabalhar com coisas que fossem absolutamente universais, como a paixão humana, a liberdade, as formas de expressão, a intuição. Eu nasci na Cidade de Goiás, antiga capital do Estado, na Rua da Abadia, número 25. Ainda estava engatinhando quando minha mãe me pegava debaixo do braço para ver a Procissão do Fogaréu. Eu nasci vendo minha mãe andar na brasa da fogueira de São João. Uma coisa que me impressionava muito é que eu pegava nos pés dela e percebia que eles eram frios. Mais tarde eu fiz uma homenagem a ela, utilizando madeiras gélidas e os santos representando as brasas. A Procissão do Fogaréu é uma loucura para qualquer criança. As luzes da cidade são apagadas e todos saem correndo atrás do Cristo. Tinha toda essa coisa da Igreja Católica. Eu tinha um medo danado daquilo. Então essas emoções visuais foram mais fortes do que qualquer outra coisa. Isso motivou muito, além, é claro, do meu pai, que era um raizeiro e falava das árvores, dos insetos, das aves. Na hora de dormir, minha mãe contava histórias e, mais tarde, identifiquei esse realismo fantástico na literatura de Gabriel Garcia Marquez. O primeiro livro que me aterrorizou foi “O Corvo”, de Edgar Alan Poe, e teve também “As viagens de Marco Polo”, que tinha desenhos maravilhosos feitos por um chinês. Eu nunca esqueci esses universos. Ou eu enlouquecia ou virava artista.


Teve uma época da sua vida em que, no final do ano, você queimava quase tudo o que tinha produzido. Por quê?
Eu fiz muito isso. Era na época de estudante. Eu sabia que minha vida seria dedicada a isso e eu pintava muito, mas sabia que era uma época de estudos, de experimentações. Eu saía para a rua e fazia uma natureza morta, um retrato, uma paisagem. Aquilo ia acabar nas mãos de algum merchant, que ficaria especulando. Então sobrou muito pouco. O que resta hoje vale muita grana. Mas não era criação, era apenas um garoto aprendendo. Eu posso ter oito anos de idade, tocar um instrumento e você achar uma maravilha. Só que você não é um maestro para considerar uma maravilha. O maestro falaria que o menino tem talento, mas que ainda não está maduro. Eu achava importante tacar fogo naquilo tudo. O primeiro ensinamento budista é o desapego. O criador que é muito apegado ao que ele faz se torna vítima desse abraço, que vai se transformando em vaidade. E depois, como é que nasce o novo? Todos nós podemos ser muito melhores do que somos hoje. Em todos os sentidos. Você conhece uma bióloga e se apaixona por ela. Daqui a pouco está apaixonado pela biologia e descobre um mundo fascinante. Então, falar que uma pessoa é só uma coisa eu acho muito pouco para o ser humano. Minha filha mais nova tem 9 anos. Desde pequenininha, eu compro e alugo documentários sobre tudo e ela demonstra um interesse enorme por cada coisa nova. Quando você dá só um tipo de música para uma criança, você está reduzindo muito a sua capacidade. É a diversidade o que torna o ser mais criativo. 


Depois você se mudou ainda criança com a família para Goiânia. Como foi essa mudança do ponto de vista de um menino?
As famílias queriam que os filhos fossem médicos. Comigo foi diferente. Minha mãe era numeróloga e dizia que eu tinha nascido em uma data mágica. “Vamos para Goiânia que esse menino vai ser o cara.” A mudança foi maravilhosa. Goiânia é uma cidade muito gráfica, em que você olha no horizonte e consegue ver o galho de uma árvore. Eu saí de uma cidade colonial para encontrar uma Goiânia Art-déco. Era um déco tardio, porque ninguém mais viajava naquilo, mas era lindo. Gostava de ver as casas prateadas, douradas, com corações e símbolos egípcios. Fiquei fascinado a ponto de me inspirar nisso para fazer o troféu do Cine Goiânia. O troféu é justamente uma foto que eu tirei de fachada, que recortei em acrílico e montei embaixo de um monte de fitas cortadas. Quando era garoto, eu ia lá pegar as fitas, juntava tudo e fazia um cineminha. Tinha metros de Ben-Hur, Cleópatra, todos os clássicos norte-americanos. Eu lia muitas biografias e história dos artistas da Renascença. Eles sabiam esculpir, desenhar, pintar, gravar e faziam até arranjos florais. Eu cresci um pouco dentro dessa história. Com 13 anos eu fazia desenhos para a TV Anhanguera e para uma agência de publicidade. O locutor anunciava “Não perca amanhã: Zorro.” Eu desenhava esse Zorro em uma cartolina preta. Na época não existia gravadora. Eu desenhava e o sujeito ficava ali do lado falando essas coisas. Depois fiz direção de artes em documentários, sobretudo com o Washington Novaes. 


Como foi entrar na faculdade aos 13 anos?
Foi a primeira vez que vi uma mulher nua. Era uma mulata linda e enorme. Fiquei muito chocado. Passei a gostar de fazer modelo nu. No Rio de Janeiro isso acontece mais naturalmente por causa da praia. Para um garoto do interior essa relação com as meninas se dá muito mais no imaginário. Na época existia um curso livre na Universidade Católica de Goiás. Eu mandei meus desenhos primeiro, mas não fui. Assinei apena Gessiron, que é meu nome de batismo, mas não falei a idade. Eles acharam interessante e quiseram conhecer esse cara. Aí chega um menino. Eu desenhava muito e aquilo foi um grande aprendizado. Eu freqüentava as aulas de anatomia humana e de pintura como aluno-ouvinte. Todos terminavam de pintar e iam embora. Eu ficava até mais tarde aprendendo com grandes professores como Amaury Meneses e DJ Oliveira, um grande amigo com quem acabei tendo um estúdio. Era um universo muito rico e mágico, especialmente para um garoto. 


E as aulas na faculdade eram conciliadas com o colégio?
Sim, eu fazia retratos para sobreviver. Lá em casa éramos 13. Eu sou o caçula. Tenho irmão de 89 anos para você ter uma ideia. São todos vivos. Eu ia na casa das pessoas e pintava com giz pastel, que é um giz colorido. Mas primeiro ninguém queria. Nem minha mãe. Todo mundo achava um horror. Eu era menino e fiquei fascinado com a história do Homem Elefante. Fiz um quadro chamado “Deus criou o homem à sua imagem e semelhança”, que está catalogado em um livro feito por uma inglesa. Eu mostrava um homem que não tinha braço. Eu conheci esse cara, que era chefe dos varredores de rua de Goiânia. Ele parecia um pernil e aquilo me dava uma angústia. Eu queria mostrar esse lado grotesco da violência. E comecei a mostrar bichos que eram tidos como feios, como anta e capivara. A violência é grotesca. Esses animais começaram a ser parte essencial do meu trabalho como personagens. Depois comecei a mostrar a alta burguesia, que sempre usou muita pele aqui no Planalto. Eu fiz uma colagem com uma foto que tinha saído na coluna social da Veja. Era uma comitiva brasileira na Europa, que tinha o Delfim Neto. Os camaradas de casaco de pele no salão. Então eu trouxe esse lado bizarro da sociedade, e sempre colocando os bichos com muita dignidade. Depois de muito tempo vem o Spielberg com o ET, que fez com que as crianças tivessem compaixão e amor por um bichinho feio e gosmento. Meu trabalho estava ligado a isso. Só que as pessoas não entendiam e se recusavam a olhar para esses monstros. O tempo acabou domesticando esses animais. Hoje esta é uma série que vale uma grana e quem tem não vende. 


Você foi pioneiro em levar o Cerrado para as telas. Isso tem origem no seu pai, que era raizeiro?
Exatamente. Eu era muito ligado ao Cerrado quando as minhas professoras falavam que era uma bobagem. Diziam que só tinha árvores feias e que não dava nada. Nas décadas de 60 e 70, o Cerrado era tratado como uma bobagem. Só que o Cerrado é uma outra estética. É algo especial e que me fascinou profundamente. Meus professores não gostavam daquilo, mas eu gostava e foi com isso que venci a II Bienal Nacional da Bahia. Foi uma exposição que durou só 35 minutos. Foi fechada pela Polícia Federal. Prenderam, bateram, arrebentaram, enfim, a bienal morreu ali. Meu quadro foi levado e eu só me safei porque tava assinado Siron, e meu nome nos documentos é Gessiron. Em Goiás Velho que inventaram o patropi. Se você nasce André, vão te chamar de Dé. Se nasce Gessiron, vai ser Siron. Eu soube que me chamava Gessiron quando eu tinha 5 anos e fui pro colégio. Então a polícia não ligou uma coisa com a outra. Depois, em 1975, quando ganhei a Bienal de São Paulo, quem foi entregar meu prêmio era o (Ernesto) Geisel. Eu fiquei escondido no banheiro. Não subi para receber.


A sua mudança para São Paulo levou também a um afastamento da arte que era feita em Goiás?
A intenção era essa. Começou um distanciamento, não das amizades que eu tinha aqui, mas do que se pensava em termos de arte em Goiás. Em 1970 eu fui para São Paulo e participei de uma exposição importantíssima chamada “Surrealismo e Arte Fantástica.” A primeira pessoa que escreveu sobre meu trabalho foi Mário Schenberg, um físico nuclear que escrevia muito bem sobre artes plásticas. Sem dúvida, uma das melhores cabeças que o Brasil já produziu. Tinha todo o contexto do que ocorria nos anos 70 no Brasil e no mundo, com Vargas Lhosa, Garcia Marquez. Não podemos esquecer que a ditadura era fudida. Tinha uma imensa contradição do Brasil bi campeão mundial de futebol e as pessoas aqui sendo torturadas. O povão mesmo não via o que estava rolando. O povo achava bom porque não tinha bandido nas ruas, mas não sabia o que estava acontecendo nos subterrâneos dos quartéis. O curioso é que o país vivia em uma ditadura, mas as artes visuais eram mais democráticas. Hoje existe uma certa ditadura imposta pelo próprio mercado. Naquela época, qualquer garoto podia expor um trabalho. Não dependia de conhecer um curador famoso para ser convidado. Eu ganhei em 1974 o prêmio de melhor pintor nacional para representar o Brasil em uma bienal internacional, onde também fui eleito o melhor pintor. E eu era um garoto. Gostava de rock pesado. Cheguei a ter um conjunto de rock, que se chamava “Os Relâmpagos do Rock”, mas a gente não tocava porra nenhuma. Era dublagem. Até hoje gosto muito de rock. Não para trabalhar, só para curtir. Gosto de Little Richards e adoro Beatles. Tenho filho de 41 anos e uma filha de 9. Tem sempre gente nova na minha casa e eu fico sabendo de todos os lançamentos. Eu nasci muito curioso. Sei de todas as novidades que estão sendo lançadas na área de brinquedos. Eu 1989, eu não achava brinquedos que tivessem relação com o Brasil. Daí fiz antas, capivaras, jacaré, carrinho de rolimã. Esses brinquedos, que eu fiz para os meus filhos, depois foram expostos na Pinacoteca de São Paulo. Não era como hoje, que você encontra bichinho de oncinha até no supermercado. 


A ditadura em Goiás era barra pesada?
Pesadíssima. Jogaram pessoas de cima da Federal (Universidade Federal de Goiás). Mataram um menino na Rua 4. A gente estava fazendo uma passeata. Eu me envolvi muito cedo com a política, mas não no sentido partidário, porque passei toda a minha adolescência sob o terror da ditadura, que foi muito forte em Goiás. Tive amigos que foram torturados, outros que foram mortos. Então a minha obra é fruto de toda a experiência de vida. Não é um relato autobiográfico, mas ele parte dessas emoções. Não deixei isso me matar. Pego o lixo e transformo em luz. 


Você chegou a ser perseguido?
Curiosamente, como eu comecei a ganhar prêmios muito cedo, os militares começaram a me condecorar. Pode um negócio desses, cara? Eu lembro direitinho do Cléber Gouveia (professor de Siron no curso de Belas Artes da UCG e com quem dividiu o Estúdio Ao Ar Livre) me dizer que eu não poderia recusar os prêmios. “Olha, você tem que aceitar, senão vão vasculhar sua vida e você se fode.” Ganhei um prêmio no México e, quando voltei, fui condecorado pelo Goubery Couto e Silva, eminência parda da ditadura, na Praça Cívica. Eu estava morando em Brasília e vinha para Goiânia aos finais de semana. Lá eu fiz um retrato do presidente. Então, eu sempre estive envolvido com a política. Fui amigo de todos os governadores de Goiás até hoje. O (Fernando) Collor me condecorou. Depois foi o Fernando Henrique Cardoso, de quem eu tive muito orgulho de ter sido homenageado por ter ganhado prêmios no exterior. No período da ditadura, eu explicava para os amigos que não queria saber de nada. Nunca quis ser herói. Então eu dizia: “Não me contem. Não suporto dor e, se me torturarem, eu conto tudo.” Sou muito saudável. Tenho 64 anos e nunca tive sequer um problema de saúde. As minhas telas são grandes, o que me faz caminhar muito. E sempre tive uma educação alimentar muito boa. Quando eu estava prestes a servir o Exército, fiz um retrato da mulher do governador, que era o Otávio Lage. Em troca, pedi que me liberasse do serviço militar. E aí a dona Iolanda Costa e Silva, que era mulher do presidente Costa e Silva, ficou encantada com o retrato que eu tinha feito da primeira-dama de Goiás. E lá fui eu pra Brasília pintar o casal.
Você experimentou drogas nos anos 60 e 70?
Parece que eu vivi dois tempos diferentes. Eu não via droga. A cocaína chegou nos Estados Unidos na década de 60. Já no final dos anos 70 é que se começou a falar mais nisso por aqui. Quem usava era uma geração mais velha do que a minha. A droga, da maneira que é usada hoje, é uma coisa mais recente. Tenho um amigo que é delegado e que diz o seguinte: “O ópio não acabou com o mundo, a cocaína não acabou com o mundo, a maconha não acabou com o mundo, mas o crack acaba.” Eu vejo como um problema de saúde pública. Não existem políticas para combater isso. Não temos gente preparada.

E qual foi a sua relação com o Daime?
Usei o daime muito tempo, mas nunca gostei de usar na igreja. Acho que tem gente que precisa da punição da igreja. Eu gosto de experimentar. Usei dois anos aqui dentro desse estúdio. Botava música, ficava sozinho, usava muito para trabalhar e para ver como era. Depois eu filmava e destruía tudo. Tenho tudo documentado.

Foi um experimento de alguma forma parecido com o que Aldous Huxley escreveu sobre “as portas da percepção”?
Exatamente. Foi a partir disso daí. Acho o daime prazeroso. Comigo nunca teve aquele negócio de ficar vomitando. Acho que as pessoas vomitam porque o ritual é muito forte. A USP já estudou o Daime e descobriu que ele ativa certos pontos do cérebro que normalmente permanecem desligados e cria uma conexão muito mais rápida. Mas eu nunca quis levar isso para um lado espiritual. Era para saber como eu veria o mundo a partir dessa ótica. 

Qual é a relação do Siron com a religião?
Eu passei por várias religiões por causa da minha família. Eles mudavam e eu mudava também. Mas nenhuma religião ou qualquer outra coisa na vida me interessou mais do que a arte e a ciência. Porque as pessoas seguem um Deus que vinga e que pune. A máquina humana é muito mais incrível. Acho que a ciência não nega Deus, ela prova. O Einstein dizia que acreditava no Deus que criou o homem, e não no Deus que o homem criou. Eu concordo com ele. 

Como surgiu a ideia de fazer uma série sobre o Césio 137?
Eu estava morando em São Paulo quando soube do acidente e vim para cá. Liguei para o (Fernando) Gabeira, Lucélia Santos e Ney Matogrosso para fazermos uma passeata aqui em Goiânia e um show no Rio de Janeiro para explicar que a não era a cidade inteira contaminada. Como eu tinha morado mais de 20 anos no bairro em que aconteceu a tragédia, comecei a fazer desenhos e ilustrações para correspondentes estrangeiros. Fiquei revoltado quando soube que estavam chutando carro de goianos em outros lugares e achando que todos estavam contaminados. Eu fiz 108 desenhos, que compõem uma reportagem visual. Eu retratei os urubus, os calangos, o fusca abandonado, as aves. Quando você lida com fogo ou com água, você vê a coisa. Radioatividade é invisível. Os catadores de lixo não queriam ir lá. E com razão porque ninguém sabia direito como era aquilo. Eu criei uma máscara e fizemos uma grande passeata. Depois criei uma exposição e levei para São Paulo. Todo mundo tinha medo de chegar perto. Aí veio uma crítica chamada Bélgica Rodrigues, que era presidente da Associação Internacional dos Críticos de Arte, e escreveu um artigo nos Estados Unidos elogiando demais essa série. Outros também começaram a escrever e ela ficou muito famosa. Ela continua viajando o mundo até hoje e vamos fazer um livro desse trabalho. Isso tudo vai parar no Instituto Siron Franco, que eu estou criando para cuidar do meu trabalho e dar espaço para jovens artistas de Goiânia. Já era para ter sido feito, mas fui roubado 11 vezes. Virou notícia no Jornal Nacional. Tem irmãos e sobrinhos envolvidos, gente que eu ajudei. Foram vários boletins de ocorrência. Roubaram tudo que eu tinha guardado. Conversando com amigos advogados, resolvemos fazer um instituto. Então estou refazendo meu acerto para doar tudo novamente para a cidade. 

Como foi a sua vida de brasileiro morando em Londres?
Eu fui para lá em 2000 pintar uma série sobre a cidade. Quando eu era garoto, li em algum lugar sobre “brasilianista” e fiquei pensando “mas que diabo é isso?” Aí descobri que era o cara que vinha aqui e estudava o nosso comportamento. Pensei: “Pô, um dia vou fazer a mesma coisa e ter meu próprio olhar sobre eles.” Então fui para Londres com essa ideia. Comecei pela prostituição. Nas cabines telefônicas tem uns cartões com imagens das mais loucas possíveis de sadomasoquismo, sadismo, o preço delas, telefones e aquelas poses grotescas do sujeito limpando a casa e uma mulher com chicote em cima dele. Eu recolhi mais de 2.500 cartões desses. É uma série que foi adquirida por um colecionador e até hoje não foi mostrada. A minha ideia era ter uma visão estética. Nada melhor para falar sobre o comportamento sexual deles do que usando o próprio material deles. Eu também peguei a moeda de 1 Pound, que é a imagem de um dragão feroz, e ampliei. Aqui os pintores sempre colocaram uma onça, uma jaguatirica ou uma anta nas cédulas. Eu fiz uma amostragem do que eram eles. Não foi um julgamento. Eu também queria mostrar que tinha putas de todos locais. Tinha a francesinha, a inglesinha, a italianinha, a brasileirinha e a jamaicana. Eles têm um preconceito contra a brasileira por ela ser uma mulher muito bonita e muito livre. Eu estou terminando um trabalho para a Secretaria de Direitos Humanos sobre tráfico de mulheres, que acabam sendo vítimas do tráfico internacional de órgãos. É algo cruel e as goianas são número um nesse ranking. Eu tentei mostrar esse mundo das putas com a arte. A minha pintura é uma linguagem das mais antigas. A dança, o teatro, a pintura, tudo isso é milenar. Pintar é repetir um gesto ancestral. Eu utilizo outras mídias, faço monumento, instalação, ilustração para livros infantis, desenho jóias. Quando eu decidi ser pintor foi pensando nos renascentistas, no sentido de que eles eram artífices e sabiam manipular várias técnicas. A minha arte não é feita para caber em determinados suportes. Aos 28 anos, eu já tinha ganhado todos os prêmios no Brasil. Daí eu fui ver o Brasil da Europa. Precisei me reinventar para não ficar fazendo o que eu já sabia. Eu voltava do meu ateliê por volta de uma hora da manhã fotografando o lixo de Londres. Eu não sou pintor nem nada. Eu tento corporificar o que passa pela minha cabeça. Eu acho que se eu fosse só pintor não conseguiria produzir mais nada. Se você analisar meu trabalho, vai ver que é uma mudança total. Eu crio uma série que deu certo e depois apago. É perigoso fazer o que você já sabe. Vira uma areia movediça. O que mantém meu trabalho vivo é o ato de fazer algo inédito. Não tenho nenhum compromisso com a pintura. A minha paixão não é a escultura nem a pintura. É a ideia. Eu tenho uma ideia que é uma pintura e de repente ela vira uma coisa tridimensional. Assim surgiram Os Casulos. Eu não coloco na minha mente que eu sou, mas que estou. Não me pergunte o que eu sou, porque não tenho a menor ideia. Tenho 64 anos e espero não descobrir nunca. É uma gama de possibilidades que você pode dar a si mesmo de ser sempre outro. Deve ser muito chato ser a mesma pessoa. 

Você sempre foi considerado um artista engajado e militante em questões sociais. Você se considera uma pessoa da esquerda?
Nem esquerda nem direita. Eu acho que eu tomo partido das coisas que eu acho que vão beneficiar uma coletividade. Eu sempre fui o chato, a ponto de alguns jornalistas me malharem muito. Quando eu vejo uma coisa errada, eu protesto porque eu sou um cidadão, e não porque sou um artista. As manifestações que eu fiz em Brasília não tinham somente um viés estético. Sempre comento algum ato, algum escândalo. Um exemplo foi a mãe de uma menina que tinha sido assassina pelo caseiro, que queria que eu criasse alguma coisa para chamar a atenção. As passeatas são muito parecidas umas com as outras. Quando você cria uma interferência no espaço urbano e cria uma visualidade funciona mais para divulgar uma ideia do que simplesmente reunir um monte de pessoas. As minhas manifestações têm uma interação profunda com o público. A minha geração inteira viveu debaixo da chibata da ditadura. A minha geração lia muito e pensava em trabalhar para ajudar os pais. Hoje é o contrário. Os filhos dependem totalmente dos pais e exigem muito deles. É uma inversão total. Dentro da minha formação moral e ética, eu não consigo pensar se não for coletivamente. Daí o nascimento do (Antonio) Poteiro no meu ateliê. O próprio sistema educacional foi colocando um estudante como concorrente do outro. A minha filha estuda em uma escola Piaget. Lá, se uma criança pode ensinar a outra se estiver mais adiantada. Tem uma coisa mais humana. É um privilégio de quem pode pagar por isso? Infelizmente, ainda é, mas por que não se pode implantar um pensamento como o do Piaget em uma escola pública?

Ao comparar a Marcha da Maconha ou a Marcha das Vadias com outras manifestações populares do passado, como Diretas Já e a própria passeata do Césio 137, você não fica com a impressão de que essas coisas já perderam o sentido?
Eu acho que é muito interessante quando um país não bloqueia nenhum tipo de manifestação. O que gera a guerra é a intolerância. O exercício da democracia é conviver com o contrário. Acho que o Brasil está se abrindo para isso. Você bater num cara porque ele é negro ou homossexual? Isso é inadmissível. A gente já tem um histórico de que a violência não funciona. Vi um documentário esses dias sobre umas hienas que se revoltaram contra a sua chefe para que uma espécie mais conciliadora assumisse o comando. Nem bicho suporta a imposição. O mundo está vivendo um período muito conturbado e, ao mesmo tempo, coisas maravilhosas estão acontecendo na ciência, na nanotecnologia. Paraíso e inferno existindo paralelamente. 

Há muitos anos, pessoas como você e o Washington Novaes falam da preocupação com a natureza. Você acha que o assunto hoje se tornou apenas um modismo? Não acha que muitas campanhas ambientais feitas por indústrias que destroem o ecossistema não têm uma boa dose de cinismo?
Eu acho que a publicidade conseguiu acabar com tudo. Até com o rap, que era uma coisa de protesto. Hoje o cara canta rap para vender um carro, uma roupa, qualquer coisa. Tudo é devorado pela indústria e tudo vira produto. Tem indústria que fode os rios e todo o meio ambiente com as fezes de porco para fabricar salsicha, mas faz uma campanha para a comunidade ficar feliz porque aquilo vai gerar emprego. É um sofisma da sociedade contemporânea. 

Atualmente você está fazendo uma instalação com pés de chocolate, pés de açúcar, pratos e remédios para emagrecer espalhados sobre 400 balanças. Você nos contou que ela será utilizada pelo Ministério da Saúde em uma campanha nacional contra a obesidade. É uma obra sob encomenda?
Não. O lance do Ministério foi o seguinte. Vieram uns ministros aqui num sábado e perguntaram o que era essa instalação. Eu estava obcecado com a questão da obesidade porque minha esposa teve problemas de saúde muito sérios. O (ministro do Supremo Tribunal Federal, José Antonio) Toffoli ficou impressionado e ligou para o (ministro da Saúde, Alexandre) Padilha falando: “Pô, tem um negócio do cacete aqui. Você, que vai fazer a campanha contra a obesidade, precisa ver isso.” Eu queria levar para uma multidão se pesar. É uma obsessão das pessoas esse negócio do peso. Uma neurose de todo mundo achar que tem de ser magro. Aí o Padilha adorou a ideia e está vindo aqui. Eu fui fazer um exame e, quando você vai pesar, você vê seus pés e os números da balança. Achei interessante essa relação dos dedos e dos números. Aí minha mulher adoeceu e surgiu essa ideia. Eu saí para comprar 400 balanças, mas só existiam 70 para venda em Goiânia. Daí, eu ligava para encomendar e as pessoas desligavam achando que era trote. Quando eu fui comprar 1.200 caixões aconteceu a mesma coisa. Ninguém acreditava. Tive de ir à marcenaria conversar com os caras, mas eles não queriam fazer. Era um trabalho gigantesco que falava sobre a mortalidade infantil e usei caixões de crianças. De longe, você via uma bandeira do Brasil. Só quando se aproximava é que via que eram caixões de recém-nascidos. Quando eu tinha 15 anos, ia todo dia para a faculdade e passava ao lado do Hospital do Câncer. Eu doei para o berçário uma obra decorativa para que aquilo não fosse tão cruel para as crianças, porque eu sempre via os caixões das criancinhas saindo de lá. Quando eu estava terminando a bandeira, depois de muitos anos, tive um estalo e lembrei que era a mesma imagem dos caixões saindo do berçário. Foi só no exercício do fazer que vi que aquilo era uma coisa que estava na minha cabeça o tempo todo e que foi disparada por um texto do Gilberto Dimenstein na Folha de São Paulo. 

Ocorre muito essa busca inconsciente que só faz sentido durante a execução do seu trabalho?
É um negócio curioso. Isso que você falou é uma verdade. Quando você busca uma tesoura, você sabe o que está procurando. Na minha arte é diferente, mas isso só ocorre com um profundo envolvimento com o trabalho. Se você estiver envolvido, pode seguir até outros caminhos. É como um texto, que vai sendo depurado e pode virar algo diferente do que foi imaginado no início. Eu vou depurando o meu trabalho e, de repente, destruo tudo e faço outra coisa. Tenho muita obra inacabada, embora esteja pintada. Eu deixo para ter uma solução nova. Com a minha técnica e a minha experiência, eu poderia facilmente resolvê-la, mas prefiro esperar o insight. 
Você diz que utiliza várias mídias. Você também trabalha com o digital?
O primeiro desenho que fiz no computador foi no estúdio do Millor Fernandes ainda nos anos 80. Depois fiz gravura também. Tenho um Macintosh só para trabalho gráfico e uma impressora que imprime com tinta que dura 200 anos. É uma tinta especial, que foi lançada só para artistas. Não é economicamente viável para todos, mas é muito interessante. Porque antes você imprimia e logo aquilo desaparecia. Muitos artistas estão fazendo obras visuais nessa impressão comum, mas em menos de oito anos a luz some completamente. 

De que forma o computador influencia na sua criação?
É a ferramenta mais interessante que já inventaram, mas o curioso é que não utilizo nenhum recurso de distorção nem truques do computador. Imprimo duas vezes, faço mudança de cores, mas uso o programa mais simples. Você não percebe que foi feito no computador. Quando você começa a usar demais esses recursos, fica visível. Nada contra isso, mas o meu conceito é muito autoral. Eu gosto dos pequenos acidentes, um retículo que estoura ali e eu vou mudando. Eu fiz uma série a partir de fotos que eu doei para as crianças que foram vítimas de uma enchente em Santa Catarina alguns anos atrás. Essas gravuras partiram de fotos. Em outras eu parto direto do desenho. Eu não uso a foto como foto. Eu a transformo depois. Sempre fui muito ligado à fotografia. 

O sociólogo Domenico de Masi defende que a criatividade humana se concentra mais acentuadamente em alguns lugares em determinados períodos históricos. Já foi na Grécia e, no período Renascentista, na Itália. Hoje ele diz que essa energia criadora está mais presente na América Latina. Você concorda?
O brasileiro é a mistura de todos os povos. Eu sou espanhol, índio e, provavelmente, negro. Isso tem que dar em alguma coisa, além do que a América Latina sempre foi muito cruel. O Japão teve um outro tipo de crueldade, que era a disciplina. Aqui nunca teve disciplina nenhuma e isso fez com que o Brasil gerasse um Darci Ribeiro, que elogia a preguiça. É outra visão. Eu acho que a criatividade é humana e está em todo lugar. Aqui no Brasil está tudo muito novo e todas as coisas ainda estão por ser feitas. Isso nos dá grandes possibilidades, sobretudo pela dimensão continental e pelo fato de falarmos o mesmo idioma. E outra: aqui não temos líder. Nunca tivemos. O povo brasileiro não se apega muito tempo a um líder. Daqui a pouco ninguém lembra de nada. Isso também tem um lado positivo. Não tem aquela doideira dos argentinos, que sempre tiveram uma necrofilia histórica. Tira Perón, leva Perón. Tira Evita, leva Evita. Aqui o culto não dura. Nem os caipiras duram. De repente vem outra dupla e aquele lá já dançou. Se você nasce na Europa, cresce e morre vendo as coisas do mesmo jeito. Nesse caso, é preciso destruir alguma coisa para sobreviver. O cara nasce na Europa e sabe que a esquina da casa dele tem mil anos e sabe que aquilo é um patrimônio que vai ficar ali por pelo menos mais mil anos. O sambista que está no morro leva sempre o filhotinho no braço. O budismo é assim. As coisas só perduram quando você coloca a criança. O maior problema do Brasil é nunca ter tido políticas voltadas para a infância. Se tivessem feito isso, teríamos outro país. Se você não investe nas crianças, vai sempre repetir a mesma coisa. Nós temos um Código Penal maluco e caduco. No mundo inteiro estão apertando as leis, mas aqui estamos afrouxando as coisas para a criminalidade. O cara mata uma menina, coloca em uma mala e é condenado a 12 anos? Tinha de ter trabalho forçado para ajudar a família que ele destruiu. 

O que você sente diante do fato que muitas obras suas foram depredadas?
Cara, em um país em que o velho e a criança não são respeitados, você espera que as pessoas vão ter alguma preocupação com obras de arte? Deveria ter gente vigiando essas coisas, como o Monumento às Nações Indígenas em Goiânia. Na Bahia destruíram um grande monumento que eu fiz em um morro inteiro com 500 peças fundidas no chão. São peças de 1,40 m com pontilhões e em cada uma delas tem uma imagem. Eu usei 16 toneladas de latinha de cerveja. Aí descobri a bandidagem que existia atrás dessa história de reciclagem. Depois de tudo o que já me roubaram e das sacanagens que fizeram comigo, era para ter ódio do ser humano. Meu pai era muito budista nesse sentido. Ele dizia que a gente tinha de dar graças a Deus porque poderia ter sido muito pior. Uma vez, fui confundido com um milionário em um aeroporto na Venezuela e fui seqüestrado por um travesti de taxista. Foram três horas de terror. Eu não queria ir, mas era casamento do meu filho e todo mundo me mandou ir. Por que eu tinha de ouvir as pessoas? Depois disso eu vou pela minha intuição. Pode ser a coisa mais simples, tipo levar a minha filha na escola. Se rolar um pressentimento, eu não vou. Lembra da minha tela “Liberdade Venezuela”? Tudo na minha obra tem a ver comigo. Acho que a América Latina é muito cruel. Os Estados Unidos estão passando por uma crise, mas a primeira coisa que fizeram foi a reforma agrária, investiram em saneamento e nas escolas. Dizem que estão falidos, mas não é bem assim. Eles têm base e uma puta tecnologia. Falam que o Brasil não está em crise. Como, se o sujeito ganha 500 reais por mês? É uma crise permanente. Eu acho um disparate falar que fulano tem tantos bilhões de dólares. A nossa elite tem muita culpa. Essa diferença social só gera porrada. Não tem carro blindado que dê conta disso. 

O empresário Eike Batista disse que não sabe se vai passar o bilionário Carlos Slims pela direita ou pela esquerda, mas que tem certeza que irá ultrapassá-lo...
Esse cara só pode ter algum problema de ereção para dizer uma coisa dessas. Ele tinha 300 milhões até poucos dias, mas agora tem bilhões. Ele é um xarope. Isso não pode fazer bem para o ser humano. É impossível ter amigos de verdade com tanta grana. Tem um provérbio esquimó que diz: “Em cima de baleia pescando sardinha.” 

Como funciona o seu processo de criação?
Eu invento um mundo particular e começo a produzir. Muitas vezes eu acordo de madrugada crente de que vou pintar um certo trabalho, mas, quando chego ao ateliê, o trabalho que me chama para ser terminado é outro. A pintura se autodetermina e acontecem as coisas mais interessantes. Falam muito sobre o tema, mas o tema é simplesmente o impulso para fazer um discurso pictórico. Nos anos 70, eu estava sendo muito copiado e vi que aquilo estava virando uma bobagem. Eu fazia uma exposição a cada dois anos. Eu dei um tempo. Fiquei 14 anos sem expor pintura. Achava que era hora de parar, não de pintar, mas de expor. Então fiquei todos esses anos desmanchando até encontrar algo novo. Muitos apostavam que meu trabalho tinha acabado ali. Eu trabalho em 30 quadros ao mesmo tempo e depois guardo tudo. Depois eu volto ao primeiro e é sempre novo. Alguns resistem. Tem quadro que está ali há sete anos e eu não terminei. Teve uma maturação do meu trabalho. Antes eu queria uma coisa emblemática. Com o tempo, eu senti que gastava muita energia com os papéis nos projetos. A emoção ficava toda lá. Então eu comecei a ir direto para a tela. Eu começo com uma grande catarse. É o que eu chamo de primeiro estágio. Em seguida, olho o que eu fiz e escolho o caminho. Eu sempre me policiei para não ter uma visão monocular. Tenho de botar novos conceitos dentro de mim para não ficar pobre. Eu nunca fechei um conceito da minha obra. Nunca quis criar uma cerca, um limite. Eu me permito fazer o que me dá na telha. O que eu mostro ao público é o resultado de 99% de destruição. Eu não sou um profissional que faz as coisas para vender. Eu só preciso da arte para tirar essas coisas da minha cabeça. 

Entrevista: Fernando Machado | Fotos: Hugo Buarques

Um comentário:

  1. Excelente matéria. Parabéns !!! Alexandre (www.pelomelhordavida.blogspot.com)

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